VICTOR MISSIATO* 06 NOVEMBRO 2023 | 4min de leitura
No dia 7 de novembro de 1831, o Brasil irá comemorar 192 anos da primeira lei contra o tráfico de escravos. Promulgada durante os primeiros momentos do Período Regencial, a “Lei Feijó”, que recebeu este nome em homenagem ao então ministro da Justiça na época, padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843), definiu que todos os escravos, que entrassem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, tornar-se-iam livres. O contexto dessa lei esteve inserido em uma conjuntura internacional de luta pelo fim do trabalho escravo em detrimento da relação valor-trabalho, que fundamentaria as bases do sistema capitalista moderno. Para termos uma ideia de como a escravidão era vista de forma antagônica ao avanço do capitalismo na época, tomemos a reflexão de Karl Marx ao refletir acerca do trabalho e das relações trabalhistas nos EUA. De acordo com o filósofo alemão, nos EUA, o movimento operário não tomou forma enquanto a escravidão vigorava no sul do país. Para Marx, em O Capital, “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro. Mas da morte da escravidão brotou imediatamente uma vida nova e rejuvenescida” (p. 372).
Embora uma pequena parte da elite brasileira compartilhasse algumas dessas premissas abolicionistas, a lei de 1831 ficou conhecida como “lei para inglês ver”, pois foi fruto mais de uma pressão internacional do que resultado de uma consciência nacional. Para se ter ideia da ineficácia dessa lei, o historiador Bruno Rodrigues de Lima afirma que após sua promulgação, mais de 750 mil novos escravos aportaram no Brasil e, em sua larga maioria, eles não conseguiram a liberdade. Seriam necessárias mais duas décadas para que, efetivamente, uma nova lei restringisse o tráfico de escravos no país.
O não cumprimento da lei em conjunto com a ausência do trabalho escravo na Constituição de 1824 produziu uma espécie acefalia trabalhista no Brasil, pois a escravidão fundamentava as bases do trabalho, ao ponto de toda uma sociedade se beneficiar direta e indiretamente de seus usos e abusos. Sendo assim, a construção da modernidade no Brasil desprendeu-se da relação entre trabalho e legislação, criando uma espécie de trabalho sem lei, operando todo um grandioso sistema trabalhista em parte na ilegalidade e em outra na informalidade.
O legado novecentista das relações de trabalho no Brasil produziu um aspecto peculiar na cultura política da República, quando os antigos escravos não se transformaram em novos cidadãos em um mundo livre. O não reconhecimento da cidadania pelo trabalho criou um limbo, através do trabalho informal, e legitimou uma série de atividades precárias e degradantes.
Terreno fértil para diversas atividades ilícitas, como pirataria, contrabandos e jogatinas ilegais, como o jogo do bicho, o Brasil viu se desenvolver, a partir dos anos 1970 e 1980, uma nova rede internacional de tráfico. Abolido o tráfico de escravos, um pouco mais de cem anos depois surgiu o tráfico de drogas, como um dos principais setores do mercado paralelo brasileiro, movimentando bilhões de reais país afora. Assim como ocorreu no século XIX, o tráfico de drogas conseguiu penetrar em todas as esferas da sociedade brasileira, rompendo com a visão clássica da lei e sua aplicação no mundo real. Não é possível pensar a economia nacional sem levar em consideração os efeitos do tráfico de drogas no mercado informal e ilegal. Isso acabou por criar distorções consideráveis e contribuiu para analisarmos o modo como as diferentes organizações criminosas coordenam o tráfico a partir das culturas regionais.
Depreende-se desses fenômenos, uma cultura do tráfico no Brasil em quase toda a sua formação histórica, criando um limite para a aplicabilidade da Constituição no cotidiano social. Sem uma atuação conjunta com outros países, sem uma transformação na política de combate às drogas e sem um envolvimento com diversos setores da sociedade civil, a dimensão da corrupção no Brasil sempre impedirá o desenvolvimento de uma cidadania plena, que se utiliza da Justiça como um instrumento de equidade social e resolução de conflitos. Enquanto isso, existirão dois Estados em uma nação, onde o Estado Democrático de Direito atua em determinados bairros e o Estado Paralelo determina o horário de funcionamento do comércio em outras regiões de uma mesma cidade brasileira.
*Victor Missiato, doutor em História (UNESP/Franca), professor e pesquisador do Instituto Presbiteriano Mackenzie, campus Tamboré
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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