ROBERTO LIVIANU 14 FEVEREIRO 2024 | 5min de leitura
Quando veio à tona o teor da reunião ministerial de 22 de abril de 2020, um mês depois do início da pandemia, nos defrontamos com uma das facetas mais pavorosas do poder, com sua verdade nua e crua – seu exercício abusivo. A perda das fronteiras entre o público e o privado, quando o governante máximo de nosso país afirmou despudoradamente que não hesitaria em usar do poder para blindar seus familiares e amigos.
Na mesma reunião e em linha filosófica semelhante, que torna subalterno o interesse público, a soberania da vontade popular e os cânones democráticos e republicanos, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles celebrizou-se ao propor que se tirasse proveito político da distração decorrente da dor profunda da pandemia para aprovar de boiada os projetos de interesse do Governo, enquanto sociedade e mídia estivessem atentos à tragédia da covid-19. Ou seja, fazendo-se uso de recurso que impossibilitasse a defesa política da vítima.
Algum tempo depois, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou categoricamente, quando as eleições começaram a se aproximar, que somente Deus poderia o tirar da cadeira presidencial, menoscabando a vontade popular. Ninguém poderia imaginar o que estaria por vir.
Eis que depois de muitas motociatas pelo país, depois de aconselhar a população a não comprar feijão, mas sim, fuzis; depois do desastre que foi a gestão da crise da pandemia, considerada pelo Instituto Lowy, da Austrália a pior do mundo (num universo de 98 países examinados), vem agora à tona a gravação de uma reunião ministerial de 5 de julho de 2022 (3 meses antes das eleições).
Naquela altura, as pesquisas apontavam vitória de Lula, e sem qualquer pudor o ex-presidente e diversos Ministros conspiraram de forma deliberada contra a soberania do povo brasileiro. Não hesitaram em elaborar planos voltados à construção de um golpe, sob a liderança do ex-presidente.
Construiu-se com grande entusiasmo a mentirosa narrativa a ser entoada vigorosamente, da ineficiência do sistema das urnas eletrônicas, visando a deslegitimação da possível vitória de Lula, não obstante Bolsonaro tenha sido eleito por tal sistema em 6 ocasiões seguidas Deputado Federal ao longo de 24 anos, sem jamais questionar a eficácia do sistema.
Poucos dias depois da reunião de 5 de julho de 2022, de fato, Bolsonaro esteve com diversos embaixadores e concretizou a ação planejada, disseminando mundo afora o discurso anti-urnas. Tal atitude ensejaria futuramente a aplicação da sanção da inelegibilidade por 8 anos pelo TSE. Na mesma linha e ao mesmo tempo, o Ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira compareceu à Câmara e ao Senado propugnando apuração paralela pelas Forças Armadas.
O General Augusto Heleno, ex-Ministro-Chefe da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) em certo momento declarou na reunião: “se tiver que virar a mesa, é antes das eleições.” Além de deixar claro que vai monitorar os dois lados (espionagem).
O assim chamado Núcleo de Desinformação intensificou suas ações para colocar em xeque a lisura das eleições e legitimar futura intervenção das Forças Armadas.
Nas investigações realizadas, foram obtidas mensagens em que o General Braga Netto se referia ao Ministro-Chefe do Exército, Freire Gomes, que optou pelo respeito à Constituição e não embarcou no golpismo, como “cagão”.
Em 3 meses entre eleições e a posse de Lula, houve sombria construção visando o desrespeito à vontade do povo evidenciada nas urnas.
Minutas de decretos presidenciais foram elaboradas por núcleo jurídico, e posteriormente revisadas, prevendo inclusive as prisões dos Ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do Presidente do Congresso Rodrigo Pacheco e a decretação de estado de sítio e GLO.
Por força de expedição de mandados de busca e apreensão pedidos pelo MPF a partir de representação da PF, houve acolhimento de tais demandas pelo STF, sendo as minutas encontradas na sala de Bolsonaro na sede do PL em Brasília, assim como a gravação da reunião, guardada um ano e meio depois de sua realização, tamanha a certeza da impunidade sendo estarrecedor e altamente comprometedor o conteúdo.
Neste cenário, o relatório anual V-Dem, sobre a democracia em mais de 180 países, avaliou há poucos meses a independência entre os Poderes, a integridade do sistema eleitoral, entre outros aspectos. Elaborado por estudiosos da Universidade de Gotemburgo, pela 1ª vez desde 1995 o estudo mostra o número de ditaduras ultrapassar globalmente o número de democracias plenas.
Foi o 4º ano seguido em que o relatório destacou piora da democracia no Brasil. Somos “democracia falha”, com riscos sérios de nos transformarmos numa autocracia. Nosso sistema de separação de poderes lamentavelmente respira, há anos, por aparelhos, caminhando o Brasil a passos firmes para virar autocracia, segundo o estudo. A impressão é que se estão perdendo os limites relacionados ao respeito à lei.
Se necessária uma nova regra, aprova-se “de boiada”, pouco importando o que o povo pensa, assim como o tempo de vigência da lei anterior. Estamos na chamada 3ª onda da autocratização vivida também pela Hungria de Viktor Orbán, pela Rússia de Putin, pela Turquia de Recep Erdogan e pela Polônia de Andrzej Duda, conforme apontam Ziblatt, Levitsky e Runciman.
O desfecho do processo não foi o golpe de Estado graças à presença atenta de mais de uma centena de observadores internacionais, à resistência da sociedade civil e à fiscalização da Imprensa, à intervenção firme do Supremo Tribunal Federal em observância à Constituição, da incompetência de Bolsonaro e à prevalência do bom senso da parte preponderante da alta cúpula das Forças Armadas, cuja mentalidade felizmente evoluiu.
Prevaleceu a estrita observância da Constituição, que o General Braga Netto interpretou como covardia, à luz dos interesses de quem detinha o poder naquele momento, que estava menos interessado em servir o povo e mais interessado em se servir do poder indefinidamente.
O único caminho possível em nome da preservação da democracia é a punição exemplar de todos os envolvidos por crimes contra a ordem democrática, inclusive o “maestro” Bolsonaro, que não poderá se esconder sob o manto de pseudo mártir, pois os fatos e evidências falam com eloquência por si.
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