GONZALO VECINA NETO* 06 DEZEMBRO 2023 | 5min de leitura
A Secretaria Nacional do Consumidor – SENACON, notificou por estes dias, uma das maiores redes de farmácias brasileiras devido à denúncia apurada pela imprensa, que esta vendia dados sigilosos de seus clientes. No ato da compra, para fazer jus a descontos, os clientes fazem um cadastro que a rede vem comercializando sem a autorização destes compradores.
As leis e regulamentos brasileiros deixam claro que a farmácia é um estabelecimento de saúde pública, embora seja um estabelecimento privado. De tempos em tempos, a discussão retorna devido a falta de definição de seu papel, através de uma proposta clara de politica pública. O que deve vender? Como deve vender? É saúde ou comercio? E volta a discussão se no supermercado devem ser vendidos medicamentos isentos de prescrição.
Mas o medicamento não é um produto de consumo como geladeiras, fogões e o acesso a medicamentos deve ser realizado através de estabelecimento de saúde denominado - farmácia. Que deve vender medicamentos, cosméticos, nutracêuticos, produtos para saúde e os demais devem ser definidos pelo Ministério da Saúde e Anvisa. Para bons entendedores, a legislação atual deixa claro o que pode, mas algumas redes, em particular as do Nordeste, fazem vista grossa e ampliam o rol.
A farmácia no Brasil não é uma drugstore americana, onde se vende de tudo, o modelo brasileiro é diferente! Em particular as grandes redes vêm tentando esticar a corda e já comercializam produtos que não poderiam ser vendidos nas farmácias e estão tentando criar novas fontes de receita. É a voragem de lucrar mais a qualquer custo e ao arrepio da lei e de suas inconsistências.
Assim, as farmácias passaram a vender e aplicar vacinas, realizar exames com equipamentos de point of care (equipamentos que realizam exames rápidos com uma gota de sangue ou saliva), vender testes para a verificação de um determinado numero de doenças, como as infecciosas – Covid, gripe, dengue. A Anvisa, durante a ultima pandemia da Covid19, teve que correr atrás das práticas que as farmácias foram lançando. Sem dúvida essas ações acima mencionadas são positivas para o acesso dos cidadãos a exames e vacinas. Os laboratórios que realizam exames reclamaram, pois as farmácias estavam invadindo uma área deles que realizam investimentos para poderem realizar os exames. Mas o fato é que essas atividades melhoraram o acesso dos cidadãos a exames e vacinas.
Fazer os testes melhorou o acesso dos cidadãos, sem uma perda relevante de segurança. Mas apesar dessas incorporações meio na penumbra, outros movimentos foram mais perigosos. Um deles e que rompe com limites, foi o da venda de informações dos clientes.
Outro movimento foi vender tele saúde nas farmácias – permitir a realização de consultas médicas através de tecnologia da informação. Aí não existe dúvida – o paciente correra um risco de ser levado a consumir medicamentos que não necessita. Confundir onde se diagnostica, com onde se trata e se vende o tratamento!
A experiência mexicana de vender consultas médicas nas farmácias pareceu uma solução à incapacidade do sistema de saúde do país em oferecer serviços de saúde. Mas o resultado está sendo desastroso.
Ainda mais que essa ação mexicana vem acompanhada de outra proposta, que já está sendo esboçada pelas farmácias brasileiras, em particular as redes, em vender medicamentos com sua marca em seus estabelecimentos, como já vem fazendo com produtos para saúde e alguns produtos enquadrados na categoria dos nutracêuticos, como vitaminas.
A farmácia não tem uma fábrica. Ela faz um contrato com uma fábrica para colocar sua marca em um produto, cuja autorização de produção na Anvisa é de um fabricante.
A promessa é que essa atividade deve melhorar o acesso a medicamentos pela diminuição do preço dos produtos. Na verdade, o que ocorre é que o medicamento se transforma em um objeto de consumo e de aumento do faturamento da farmácia.
Hoje as grandes redes têm em suas prateleiras produtos com sua marca própria – produtos usados na realização de curativos, por exemplo. É fácil identificá-los, eles ocupam um espaço privilegiado nas prateleiras, tem um destaque especial e quase nunca essa diferença tem a ver com um preço mais acessível.
A análise das experiências internacionais – México, Chile e Canadá – estes dois últimos países já voltaram atrás na permissão do uso da marca própria para medicamentos, revelam o erro dessa política e, mesmo no Brasil, a análise do ocorrido com produtos como vitaminas não melhorou o acesso e não reduziu os preços. É apenas selvageria no mercado de venda nas farmácias.
A comercialização dos dados de clientes tem que acender uma luz vermelha nos órgãos regulatórios. Por enquanto apenas o órgão ligado ao Ministério da Justiça se manifestou, a saúde está ignorando.
E existe um movimento no Congresso para ampliar o papel das farmácias no atendimento à saúde – querem realizar atos médicos como consultas e vender medicamentos com uma marca própria. Com certeza existem lobbies já articulados e projetos de lei com seus respectivos jabutis, para serem negociados e aprovados. Essa atividade tem que ser vetada, com certeza não aumenta acesso, não melhora a situação dos sistemas de saúde, somente melhora os lucros através da venda casada.
Assim o Ministério da Saúde tem que se posicionar antes que essa pressão se transforme em um fato consumado. A Anvisa a partir da emissão desse posicionamento devera atualizar a regulamentação da atividade das farmácias e deixar claro qual é o papel das farmácias na saúde publica. Será apenas um estabelecimento comercial a mais? E os hospitais também podem comercializar medicamentos? Com marca própria? Afinal o medicamento é um produto de consumo ou de saúde?
Neste momento não existe dúvida de qual será a posição do MS, mas esta tem que ser explicitada para orientar a posição do órgão regulador e indicar ao mercado os limites de sua atuação para o bem do SUS e dos consumidores brasileiros!
*Gonzalo Vecina Neto, professor assistente da FSP/USP e do mestrado profissional da EAESP/FGV
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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