Maria Tereza Aina Sadek*
05 de outubro de 2022 | 05h00
A revista britânica The Economist publica, desde 2006, o ranking Índice Democracia Global. No último levantamento, relativo ao ano de 2021, o Brasil foi classificado como democracia imperfeita, ocupando a 47ª posição em uma lista que engloba 167 países. Cinco categorias agrupam os 60 critérios adotados – processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política. Os resultados obtidos permitem distinguir democracias plenas, democracias imperfeitas, regimes híbridos e regimes autoritários.
Em 2021, Brasil apresentou retrocesso em relação ao ano anterior, com uma média final de 7,65 pontos. A pior nota conferida ao país foi relativa ao critério funcionamento do governo (5,36) e a melhor ao processo eleitoral (9,58). Certamente, o Orçamento Secreto contribuiu para a avaliação mais baixa. Esse sistema, criado em 2020, resultou de um acordo entre o Executivo e o Congresso Nacional, capturando o governo, os recursos públicos e as prioridades estabelecidas em políticas públicas.
A negociação que terminou com a aprovação do Orçamento Secreto, garantiu base de apoio ao Executivo no Congresso, permitiu que uma parte significativa das verbas federais passasse a ser administrada por deputados e senadores. Trata-se de mudança radical, possibilitando que o dinheiro público seja usado, sem a necessidade de tornar público e transparente como as verbas foram disponibilizadas e aplicadas.
Anteriormente, grande parte dos recursos controlados pelo Congresso era disponibilizada por meio de emendas individuais, distribuídas de forma igual entre os parlamentares e com transparência sobre como cada deputado ou senador aplicou o recurso e para qual a finalidade.
A partir de 2020, contudo, além das emendas parlamentares individuais, de comissão e de bancada, deputados e senadores, por meio de emendas de relator, tornaram-se depositários de verbas extraordinárias, que podem ser utilizadas com discricionariedade. Tais emendas não obedecem a critérios técnicos, de transparência, e tampouco de equidade ou proporcionalidade. Ao contrário, resultam de critérios estritamente político-eleitorais, isto é, favorecem os que apoiam o governo, incentivando negociatas e a corrupção.
Os estímulos a irregularidades não tardaram a aparecer. Verbas do orçamento secreto foram usadas em propagandas eleitorais; para a compra de tratores e equipamentos agrícolas para redutos eleitorais por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo; para a compra e a distribuição de caminhões de lixo compactadores, com preços inflados, para cidades com número reduzido de habitantes; para a compra de ônibus escolares com preços superfaturados; para a distribuição de ambulâncias de forma desproporcional ao tamanho da população do município e da Unidade da Federação (denúncia feita pelo jornal O Estado de S.Paulo).
Em todos os casos, os políticos beneficiados são da base do governo e não houve controle sobre a aplicação do recurso. Os indícios de ilegalidades se multiplicam, mostrando que a falta de transparência e de prestação de contas incentivam fortemente irregularidades. No orçamento aprovado para o próximo ano, essas verbas cresceram, indicando que as bases da governabilidade se assentam em acordos espúrios e não em questões programáticas.
A corrupção, que muitos dizem ser endêmica, ganhou um forte aliado com o orçamento secreto. Essas verbas não obedeceram a critérios republicanos, a parâmetros socioeconômicos, sendo utilizadas para servir aos interesses de seus proponentes e não os da população. Desta forma, são anunciadas como favores e não como direitos dos cidadãos.
O vírus do segredo, da opacidade se espalha com muita rapidez. Segundo levantamento realizado pelo jornal O Estado de S.Paulo, entre 2019 e 2022, o Executivo impôs sigilo de cem anos para 65 casos que deveriam ser públicos. Um rápido exame da lista revela que, na maior parte dos casos, ocorreu abuso, um verdadeiro atentado ao direito à informação, um estímulo às chances de corrupção.
De fato, o que justificaria incluir como sigiloso, por exemplo, mensagens diplomáticas sobre jogadores presos no Paraguai por uso de documento falso, em 2020; informações sobre o médico bolsonarista detido por assédio no Egito; a carteira de vacinação do presidente; os nomes dos que visitaram a primeira dama; informações sobre os crachás de acesso ao Planalto dos filhos do presidente; o processo sobre as “rachadinhas” do senador Flavio Bolsonaro?
Um sistema político que institui o segredo, que preza a falta de transparência e desconsidera a prestação de contas, opera com mecanismos que estimulam a corrupção e a negociata. Com tais traços, só pode ser caracterizado como democracia imperfeita, perde pontos na qualidade da democracia, correndo, inclusive, o risco de ser qualificado como “regime híbrido”.
Democracias abominam o segredo. A transparência é antídoto ao secreto. Em um Estado de Direito, a regra que dispõe sobre o secreto está definida no código de processo civil. Na vida pública, o voto, sim, deve ser secreto e com igual valor para todos – uma qualidade que garante a livre escolha do cidadão. Políticas públicas, ao contrário, têm que traduzir prioridades, têm que almejar uma sociedade mais justa e igualitária, tendo na transparência a indicação de respeito a regras claras e de igual aplicação para governantes e governados.
*Maria Tereza Aina Sadek é graduada em Ciências Sociais pela PUCSP, possui mestrado em Ciência Sociais pela PUC, doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Tem pós-doutorado na Universidade de Londres, na Universidade da Califórnia e na USP. Professora do Departamento de Ciência Política da USP. Leciona na Pós-Graduação na Faculdade de Direito da USP, na disciplina: Pesquisa em Direito. Foi diretora de pesquisas no CNJ, durante a gestão da ministra Carmen Lúcia. Possui livros e artigos nas áreas de Teoria Política, Política Brasileira e Sistema de Justiça. Desenvolve pesquisas sobre instituições do sistema de justiça e acesso à justiça. É integrante do CEBEPEJ, do Conselho de Pesquisas da FGV, do CONAR, do ETCO, da Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do ESP
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
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