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Foto do escritorInstituto Não Aceito Corrupção

Os 200 anos de independência brasileira: corrupção desde o início?

Maria Fernanda Dias Mergulhão*

12 de setembro de 2022 | 05h00


O termo corrupção no período colonial brasileiro era desconhecido, mas o significado da expressão, consideradas as relações de poder e regime impostos à época, pode ser identificado através do termo “delinquir”, quando empregado ao mau governo, em especial, na obtenção de vantagens ilícitas e favoritismos. É necessário considerar todas as peculiaridades do Antigo Regime, aplicado ao Brasil colonial, diante do trato da coisa pública girar em torno da fidelidade ao monarca, distanciando-se da concepção moderna de que os bens são públicos e seus gestores são detentores transitórios da representação popular.


Delinquir, crimes de lesa-majestade, limpeza de mãos e devassas, foram termos amplamente utilizados no Brasil Colônia. Indicativos do que hoje se concebe por corrupção. Crime de Lesa-Majestade foi previsto nas Ordenações Filipinas, que correspondia a uma traição cometida contra a pessoa do Rei, um soberano, ou contra o erário. O temor poderia ser constatado através da punição imposta, eis que alguns condenados eram punidos com execução pública por meio de tortura, sem prejuízo do confisco de bens em favor da Coroa e condenação da família do condenado à infâmia.


Diante da condição de dependência que a grande maioria da população colonial se apresentava- para obter segurança, abrigo, trabalho, saúde e mesmo alimento- a aceitação, e conivência, frente aos desmandos era quase inevitável. A denominada “troca de favores” era uma prática comum entre os brasileiros, e rapidamente incorporada à cultura nacional.


Padre Antônio Vieira, um dos maiores críticos ao sistema imposto por Portugal, apresentava sua irresignação em diversos Sermões apontando os desmandos e a corrupção, ora de forma explícita, ora subliminarmente. Os sermões, relatos, discursos e ontologias se repetiam: todos no mesmo sentido de que em terras brasileiras, desde o período colonial, as práticas corruptivas de diversas ordens eram muito comuns, quase naturalizadas perante a população.


Para denunciar tais abusos, desde o Antigo regime, e também aplicado ao Brasil colonial, fora admitido o “direito de representação”, que consistia no direito de as pessoas apresentarem “queixas” ao monarca, como embrião do que hoje se denomina por “cidadania”. Diante do juízo de valor casuístico, determinava-se, ou não, a abertura de uma “devassa”, que era uma espécie de processo contra o denunciado para apurar a veracidade dos fatos descritos na “queixa”.


Examinando esse período histórico, atesta-se que a metrópole envidou esforços para coibir os abusos, os atos de delinquência, a corrupção aqui verificada, ora admitindo o “direito de representação”, ora impondo a abertura de “devassas” contra aos que entendia ser fundadas as queixas, ora determinando as “declarações de residência”, como forma de controle dos representantes públicos régios no exercício de seus mandatos.


Nos autos de residência o servidor régio era investigado, ao fim do mandato, acerca do desempenho e lisura de sua conduta condicionando-se o resultado dessa investigação ao desempenho de novos cargos, e mesmo da obtenção da remuneração por serviços prestados. Interessante que, a partir da análise dos ditos “autos de residência” pode se perceber que a preocupação com a lisura no trato do bem público era corroborado com o item “limpeza de mãos”. Idealmente concebida para erradicar, ou ao menos dificultar, o cometimento de delitos (corrupção), no período colonial, os autos de residência foram considerados falidos porque não se prestava à sua criação.


Importante ressaltar, que o termo “limpeza de mãos”, corrente à época, designava probidade na gestão do bem público e que era comum respeitar-se o triênio de cada mandato político para, após, aplicar a punição. Certamente, em tempos atuais denominaríamos a esse termo a expressão “transparência”.


Para os crimes de traição e de lesa-majestade, em que, ontologicamente a corrupção se incluía a Coroa não admitia perdão. Curioso porque em tantas situações observava-se a complacência diante do rigor legal que desafiava, em verdade, a autoridade e poderio nos domínios de suas terras.


A rede de contatos, a “rede clientelar”, e a “economia do dom”, instrumentalizada pela concessão de mercês, arcabouço do patriarcalismo estatal eram correlatos, já que as redes pessoais favoreciam a concessão de benesses no Brasil colônia.


Comemorar os 200 anos da Independência Brasileira é civicamente fato relevante, assim como rememorar todas as conquistas ao longo desses dois séculos. Naturalizar atos de corrupção corresponde a uma das maiores causas do atraso nacional, que nenhum superávit de PIB terá o condão de atenuar essa grave mazela. O Brasil já venceu duras batalhas na linha evolutiva do desenvolvimento social. O que nos falta para superar esse desafio?


*Maria Fernanda Dias Mergulhão, promotora de Justiça RJ, doutora e mestre em Direito, mestre em Sociologia. Professora universitária


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac).


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