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O perigo das bolhas de narrativas

ROBERTO LIVIANU 27 FEVEREIRO 2024 | 5min de leitura

 

Em junho de 2021, foi realizada uma motociata em apoio ao ex-presidente Bolsonaro. Na ocasião, apoiadores do ex-chefe do Executivo declararam, categoricamente, ter havido a participação de 1,3 milhão de motociclistas.

 

No entanto, o percurso passava necessariamente por praça de pedágio e a passagem das motos ficou registrada com precisão. Obviamente, não podemos considerar que 100% das motocicletas que por ali transitaram eram de manifestantes. Supondo que fossem, foi registrada a passagem de só 6.661 motos pelo pedágio.

 

Ou seja, a narrativa criada amplificou a quantidade de participantes cerca de 200 vezes, ou seja, 10.000%. Assim, a fraude numérica fica demonstrada de forma inquestionável pela contabilização da praça de pedágio.

 

O exemplo acima serve para mostrar que versões dos próprios manifestantes, que chegaram a dizer que havia mais de 1 milhão de pessoas reunidas no ato na avenida Paulista, em São Paulo, no domingo (25.fev.2024), são pouco ou nada confiáveis. Afinal, hoje, as narrativas engolem as verdades e encontrá-las, servindo-nos da mitologia grega, pode se transformar no 13º trabalho de Hércules.

 

Recorrendo à ciência e fugindo do negacionismo, de triste memória nacional durante a gestão da pandemia de covid-19, o Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP (principal universidade da América Latina), coordenado pelos professores Pablo Ortellado e Marcio Moretto, dispôs-se a estimar o número de pessoas presentes no ato.

 

O trabalho foi realizado a partir de fotos aéreas de alta resolução, tiradas das 15h às 17h, em toda a extensão da avenida Paulista, considerando contagem de cabeças e utilizando software de apoio. Concluíram que no pico do ato havia 185 mil pessoas.

 

Os organizadores esperavam cerca de 700 mil manifestantes, portanto, de acordo com o levantamento do monitor, compareceram 26,4% da quantidade esperada.

 

Não se pode dizer, obviamente, que o número de pessoas reunidas na Paulista foi pequeno. Foi expressivo e talvez tenha sido ampliado em razão das lamentáveis declarações do presidente Lula na Etiópia na semana anterior, comparando absurdamente a reação de Israel ao ataque do Hamas ao Holocausto de Hitler, que exterminou 6 milhões de judeus.

 

O ato demonstrou inequivocamente que o ex-presidente, ainda que condenado pelo TSE à pena de ilegibilidade por 8 anos, respondendo por gravíssimas acusações que podem sujeitá-lo inclusive à pena de prisão, conserva certo poder de mobilização.

 

Por outro lado, mesmo que a organização do ato tenha vetado cartazes com dizeres de ataques às instituições, houve discursos nesse sentido, do próprio ex-presidente de forma indireta e do pastor Malafaia de forma mais direta ao ministro Alexandre de Moraes, ao STF e ao TSE.

 

A dinâmica desses atos flui de acordo com as circunstâncias de momento, estando os organizadores conectados aos algoritmos das redes sociais. Mas, às vezes, os exageros os levam a caminhos perigosos, como ocorreu em ato anterior a esse, anos atrás, também na avenida Paulista, em que o ex-presidente esteve presente, ofendendo ao ministro Alexandre de Moraes, afirmando que não obedeceria a suas decisões, visando a inflamar sua claque, que urrava ao ouvir tal discurso.

 

Um estadista deve ser sempre responsável e extremamente cuidadoso com as palavras. Afinal, dele se esperam sérias atitudes de liderança e comunicação é aquilo que o destinatário da mensagem assimila.

 

Ao perceber o gravíssimo erro, precisou procurar o ex-presidente Temer, de emergência, pedindo que este intermediasse um telefonema e a elaboração de uma carta de recuo estratégico medroso. Praticamente ajoelhou-se diante do ministro, temeroso por um processo de impeachment.

 

É sintomático que logo depois da divulgação midiática da reunião de 5 de julho de 2022, comandada pelo ex-presidente, em que se falava abertamente em violação à ordem democrática e quando a situação de Bolsonaro se torna crítica, articule-se esse ato, que é legítimo, mas não tem eficácia para mudar o curso dos acontecimentos.

 

A PF, o MPF e o sistema de Justiça cumprirão seus papéis, mesmo diante de esperneios de investigados ou de atos de apoio a eles –isso não vergará as espinhas das instituições democráticas.

 

O ex-presidente, por outro lado, fez questão, em sua fala, trajando a camiseta da Seleção, de postular anistia aos envolvidos nos ataques do 8 de Janeiro, classificando-os como “pobres coitados”. Os tais “pobres coitados” que destruíram simultaneamente os prédios dos Três Poderes da República, que subtraíram documentos e espancaram mais de 40 jornalistas, conforme informações da Abraji.

 

Primeiro, domingo se usava verde e amarelo, inclusive muitos usavam especificamente essa mesma camiseta amarelinha da Seleção. Hoje, assistimos a um fenômeno curioso –a apropriação indevida do verde e amarelo, da vestimenta (camisa da Seleção) e da bandeira nacional por um político e seus seguidores.

 

Um indivíduo qualquer não pode mais usar essa camiseta ou hastear a bandeira fora do contexto político sem ser rotulado ou constrangido. São símbolos em relação aos quais nenhum político ou movimento político deveria sequer pensar em se apropriar, por pertencerem à nação brasileira.

 

Segundo, deve-se observar que o ex-presidente não se solidarizou publicamente aos apoiadores que ficaram semanas a fio sob sol e chuva, “abraçando quartéis”, iludidos, em vão. Aliás, nem ele nem seu riquíssimo PL.

 

Bolsonaro também não se dispôs a ajudar a custear suas defesas, com os muitos milhões arrecadados em seu benefício, que sobraram da vaquinha para pagar suas multas. Declarou que optaria por “um pastel e um caldo de cana com Dona Michelle”.

 

De forma oportunista, usou os “pobres coitados” no domingo para invocar para eles genérica e hipotética anistia, de cabimento jurídico duvidoso, para obviamente dela se beneficiar, depois de silêncio ensurdecedor na PF, quando deveria trazer as verdades à tona no inquérito policial que apura crimes contra a ordem democrática. Afinal, quem não deve, não teme. Queremos pisar em terra firme, e não ficar flutuando em bolhas de narrativas.

 

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