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O buraco negro da Lei de Improbidade Administrativa

WALLACE PAIVA MARTINS JUNIOR* 06 DEZEMBRO 2023 | 4min de leitura

 

Antes da radical modificação operada pela Lei 14.230, de 2021, na Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429, de 1992) era comum dizer que todo crime funcional próprio, praticado contra a Administração Pública, caracterizava ato de improbidade administrativa, embora nem todo ato de improbidade administrativa constituísse crime. Isso se devia em razão da adoção de róis exemplificativos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei n. 8.429, pois, mesmo que não estivesse o fato catalogado em seus respectivos incisos sua adequação ao caput de cada um desses artigos bastava para tipificação do ato de improbidade.

 

Com essa alteração legislativa, o artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa passou a ter redação taxativa. Portanto, se o crime contra a Administração Pública não constituir enriquecimento ilícito (artigo 9º) – como o peculato, a concussão ou a corrupção passiva - ou prejuízo ao erário (artigo 10) – como a contratação direta ilegal, a fraude em licitação ou contrato -, ele não será punido com base no citado artigo 11, impossibilitando a aplicação de sanções da Lei n. 8.429 que não existem na legislação penal. Embora punidas como crimes, tentativas de enriquecimento ilícito ou de prejuízo ao erário e também delitos como prevaricação, condescendência criminosa, advocacia administrativa, tortura, não são puníveis pela Lei de Improbidade Administrativa, porque, em síntese, não se amoldam aos artigos 9º e 10 e nem estão descritos no rol do artigo 11.

 

Além disso, deve-se considerar outras particularidades: as pessoas jurídicas de direito privado que podem ser coautoras ou beneficiárias de improbidade não são punidas pela legislação penal (societas delinquere non potest); há sanções típicas na Lei de Improbidade (como o pagamento de multa civil ou a proibição de contratação com o poder público) que não são previstas na legislação penal; nem sempre a jurisdição penal impõe como efeito secundário da condenação a perda da função pública.

 

Trata-se de disfuncional e ilógica situação que tem o grave inconveniente de dispensar à tutela do interesse público grau menos eficiente. Decerto o Congresso Nacional a corrigirá, sem embargo da interpretação jurídica para evitar esse autêntico buraco negro normativo que rui a premissa da imprescindibilidade de reação com maior intensão ao ato ilícito de improbidade - exigente de responsabilização nas esferas civil e penal - por se tratar da reprovação à desonestidade na condução e gestão da res pública.

 

A solução da controvérsia transita pela exata compreensão da cláusula do § 4º do artigo 37 da Constituição: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

 

Cuida-se de mandamento constitucional determinante da repressão à improbidade administrativa, cuja fórmula final (“sem prejuízo da ação penal cabível”) prevê a dúplice punição (civil e penal) desses atos ilícitos. É uma obrigação que garante à sociedade o seu direito subjetivo público à honestidade nos negócios públicos, fundamento primígeno da república e que decorre do princípio de moralidade administrativa constante da Constituição de 1988.

 

 

Ademais, essa interpretação empolga o alcance da penetração no direito brasileiro dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil sob os auspícios da diretriz de prevenção e repressão à corrupção lato sensu, mediante instrumentos eficazes, eficientes e efetivos de responsabilização pelo abuso de função, entre outros. Tratados e convenções internacionais com esse propósito se incorporam ao direito nacional com status supralegal ou constitucional.

 

Essas balizas são proficientes para a exata compreensão que a Lei n. 8.429 merece em sua redação atual, a fim de sua conformidade com a Constituição de 1988, sob pena de - a despeito de seus artigos 9º e 10 com suas relações exemplificativas resolverem parcialmente a questão - se criar, como dito, um buraco negro normativo (algo que deve ser evitado no tratamento de assunto tão sério). Com efeito, como demonstrado, em virtude da supremacia da Constituição na hierarquia das normas, o artigo 11 da lei deve ter compatibilidade com a Carta Magna de 1988, não se solucionando a grave, delicada e sensível controvérsia sob o argumento de opção legítima do legislador. O mínimo que se pode construir, para eliminar nicho de impunidade, é afirmação da responsabilidade por improbidade administrativa de ato capitulado como delito como atentado aos princípios da administração pública se não caracterizar enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário.

 

*Wallace Paiva Martins Junior, subprocurador-geral de Justiça (MPSP), doutor em Direito Administrativo (USP) e professor de Direito Administrativo (graduação) e Direito Ambiental (pós-graduação stricto sensu) na Universidade Católica de Santos (UNISANTOS)

 

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

 

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