LIGIA MAURA COSTA* 06 DEZEMBRO 2023 | 4min de leitura
O setor varejista brasileiro enfrenta novo revés com as “incorreções contábeis” do Magazine Luiza, resultando numa redução de quase R$ 830 milhões do patrimônio líquido da empresa. Este episódio sucede o recente escândalo financeiro da Americanas, com mais de R$ 20 bilhões em “inconsistências contábeis”. Independentemente de essas incorreções decorrerem de erro, fraude, inconsistências ou outras imprecisões, é evidente que as grandes redes varejistas brasileiras enfrentam sérios desafios de governança corporativa, melhor dizendo de “governance-washing”. Quando a empresa adotar medidas de governança apenas para criar uma imagem de responsabilidade corporativa, sem de fato implementar mudanças necessárias na governança, essa conduta é chamada de “governance-washing”. Essa prática traz a ilusão de boas práticas de governança, enganando investidores e demais stakeholders. Não basta, portanto, declarar compromissos de boa governança, de cumprimento dos princípios ESG (acrônimo em inglês para ambiental, social e governança) sem a implementação efetiva desses princípios na prática.
O novo escândalo no varejo brasileiro sugere a urgência de uma regulamentação brasileira mais rigorosa, equiparada à lei norte-americana Sarbanes-Oxley, para proteger stakeholders de incorreções, inconsistências e práticas contábeis fraudulentas. É fato que as ações do Magazine Luiza, da mesma forma que as da Americanas, enfrentam a possibilidade de sanções disciplinares, podendo inclusive serem retiradas do Novo Mercado e do Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3. Mas isso é ainda muito pouco. Se o mesmo fato tivesse ocorrido nos Estados Unidos da América, a lei Sarbanes-Oxley (SOx) impõe rigorosas sanções para casos esses casos, onde tanto as empresas quanto os indivíduos envolvidos em práticas contábeis duvidosas podem ter que pagar multas altas, além de serem pessoalmente responsabilizados, do CFO ao CEO inclusive. Em casos graves, a Lei Sarbanes-Oxley pode impor restrições ao acesso da empresa ao mercado e até a perda total do registro na bolsa de valores.
O Magazine Luiza recebeu uma denúncia anônima sobre práticas comerciais em desacordo com o código de conduta da empresa. Conforme o relato anônimo do informante do bem, as práticas ilícitas estavam relacionadas a operações de bonificação ligadas a compras de alguns fornecedores e distribuidores. Na prática, o Magazine Luiza contabiliza os bônus com base na data de emissão das notas fiscais. Contudo, o valor seria reconhecido somente após a venda dos produtos. Assim, o distribuidor e o Magazine Luiza acordavam um “abatimento” caso a empresa atingisse a meta de venda. Devido a uma falha no controle, o abatimento foi registrado antes de se alcançar a meta. A partir da denúncia, a varejista fez uma investigação e corrigiu as incorreções contábeis, o que resultou em redução substancial de seu patrimônio líquido.
A importância do canal de denúncias na promoção das práticas de boa governança corporativa não deve ser minimizada. Quando se garante o anonimato e a confidencialidade, o informante do bem se sente seguro para compartilhar informações sensíveis, sem receio de represálias. O acesso a informações por meio de denúncias anônimas permite que as empresas ajam prontamente investigando e corrigindo irregularidades, como fez o Magazine Luiza.
A legislação brasileira, em consonância com a Convenção da ONU contra a Corrupção, apesar de avanços notáveis na proteção do informante do bem – Lei Anticorrupção e Lei de Proteção ao Denunciante –, ainda enfrenta desafios quanto à sua eficácia e abrangência. Uma das principais preocupações está na ausência de medidas concretas para assegurar a plena proteção do denunciante através do anonimato, especialmente em relação a sua integridade profissional e psicológica. Faltam dispositivos legais robustos de prevenção e combate às retaliações pelas organizações ou terceiros, gerando desconfiança naqueles que pretendem denunciar práticas antiéticas ou ilícitas. Outra crítica é a falta de incentivos financeiros para os informantes do bem pela divulgação de informações de práticas ilícitas. Esse contexto contrasta com as práticas adotadas em outros países, especialmente nos Estados Unidos da América. Um exemplo é o Dodd-Frank Act, lei promulgada em resposta à crise financeira de 2007-2008, onde o benefício financeiro do denunciante do bem é um percentual que varia de 10 a 30% do montante recuperado, nas sanções superiores a US$ 1 milhão.
Mais do que gerar preocupações sobre a responsabilidade social corporativa de grandes varejistas perante a sociedade brasileira, a incorreção contábil destaca a importância de se cultivar uma forte cultura de integridade e de boa governança corporativa. Práticas contábeis inadequadas abalam a confiança não somente dos investidores, como também dos consumidores. É necessário que a empresa tenha mecanismos de controle interno eficazes e que promovam a transparência, a integridade e a ética. A construção uma cultura organizacional de integridade ajuda a prevenir essas práticas contábeis inadequadas. Uma boa governança corporativa significa uma conduta proativa na promoção de valores e princípios éticos que vão além do mero cumprimento das obrigações legais. A incorreção contábil apontada pelo Magazine Luiza é apenas um lembrete para a empresa da importância imediata de melhorias na governança corporativa.
*Ligia Maura Costa é professora titular na FGV EAESP, coordenadora do FGVethics, advogada, conselheira independente
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
Comments