ANA CLAUDIA SANTANO* 06 DEZEMBRO 2023 | 5min de leitura
É algo costumeiro da sociedade brasileira como um todo a presença de fortes críticas contra as instituições, seus atores e suas dinâmicas. No senso comum, construiu-se uma imagem pouco favorável do espaço público formal do Estado, fomentada por fatos noticiados que terminam por fundamentar – e justificar – essas opiniões.
Esta crítica não poupa ninguém. Partidos políticos, poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), membros desses poderes como parlamentares, magistratura, servidores públicos, enfim. Qualquer conexão com a “coisa pública” tem a tendência de despertar uma quase que automática reprovação por parte da pessoa que recebe a mensagem, criando, não raramente, um muro que freia qualquer diálogo mais racional sobre temas correlatos. Até o terceiro setor e a sociedade civil é afetado por essa preconcepção de ideias.
Há razões óbvias para que pessoas em geral adiram a essa postura. Infelizmente, sobram os casos de corrupção que não sofrem a devida reprimenda, levando-os à impunidade, como demonstram diversos estudos elaborados, dentre eles, o recém-publicado Relatório da OCDE do grupo de trabalho antissuborno (Brazil’s Phase 4 Monitoring Report), que afirma que há um nível elevado de não punição de casos de corrupção no Brasil envolvendo suborno transnacional.
Por outro lado, há um outro elemento que também colabora para essa visão negativa que se tem em geral do Estado, e ele corresponde justamente às relações que as pessoas em geral têm com as instituições e com o espaço público como “coisa”. Aliás, essas relações também são muito exploradas por discursos que fomentam a polarização, em casos, por exemplo, de pessoas que recebem algum recurso público. Pouco importa se legítimo ou não, se cumpridor das normas ou não. Recebeu dinheiro público ou tem qualquer tipo de vínculo com algo do Estado, isso será tido como algo negativo e que contamina quem está envolvido, sem direito de defesa.
Contudo, a sociedade brasileira em boa parte se fundamenta no Estado. Não alcançamos a ter o que se conhece por Estado de bem-estar, mas esperamos um apoio estatal às necessidades mais variadas. E não há problemas em ser assim, pois o Estado, de fato, está para servir a cidadania.
Porém, esse artigo não é dirigido a este enfoque, mas sim um envolvendo a nossa relação com as instituições e o Estado. Se somos os primeiros criticar tais relações, que em muitos – mas não em todos – os casos podem configurar um conflito de interesse, será que nos comportamos eticamente quando situações assim surgem em nossas vidas?
Essa reflexão é importante porque todas as esferas do Estado são compostas por pessoas. Em sociedades utilitaristas como as nossas, e que alimenta a vantagem pessoal em detrimento do desenvolvimento coletivo (seja geral, seja da categoria ou do grupo), o conflito de interesse muitas vezes é relevado, aceito, quando não justificado.
Um conflito de interesse surge, resumidamente, quando há uma relação entre duas ou mais partes em que o interesse particular desses agentes pode colidir com os fins, objetivos ou resultados dessa dinâmica. Inclusive, há uma lei em específico que trata sobre o conflito de interesse, que é a n° Lei nº 12.813/2013, que abrange o Poder Executivo Federal, bem como a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 125 de 29 de novembro de 2010, englobando o Poder Judiciário.
No entanto, não é possível determinar um código de conduta geral para uma sociedade inteira, nem mesmo prever todas as hipóteses em que pode haver um conflito de interesse. Há zonas cinzentas inevitáveis quando se aborda questões como essa e que terminam ficando a critério dos envolvidos. Afinal, se não há consenso se há de fato o conflito de interesse, pode ser discutível.
Vamos citar um caso clássico e que certamente é foco de muito debate: a possibilidade de os partidos políticos, por meio de suas bancadas, legislarem sobre eleições ou direito partidário. Há quem diga que aqui há um conflito de interesse direto nessa autorregulação, pois as agremiações nunca irão legislar de modo a prejudicá-los. Aqui, novamente, casos são frequentes, como é o caso da Proposta de Emenda à Constituição n° 9, em trâmite na Câmara dos Deputados, que objetiva a maior anistia concedida aos partidos da história do Brasil pós-1988, no que se refere às irregularidades praticadas em geral em processos eleitorais anteriores de sua promulgação (que não se sabe quando será ou se realmente vai ocorrer).
Entretanto, há quem diga que os partidos e as bancadas eleitas possuem plena legitimidade para legislar sobre estes tópicos, uma vez que foram eleitos para representarem a população nas casas legislativas tendo, portanto, o selo democrático como aval de sua atuação. Até porque, se não fossem eles os que estabelecem as “regras do jogo” das eleições e dos partidos mesmos, quem seria? O Executivo? A Justiça Eleitoral? Aqui já choveriam críticas a esse tipo de comportamento por parte desse ramo do Judiciário, que não possui legitimidade democrática para esta tarefa.
Outras hipóteses podem nos colocar para refletir quando se trata de conflito de interesse, como na advocacia em que as partes não podem ser representadas por advogados parceiros; juízes que devem declarar suspeição em caso de relação próxima com as partes e seus defensores; médicos e médicas em sua atuação com laboratórios; indicados a cargos públicos e suas relações pessoais com as autoridades que os nomearão. Há uma infinidade de casos em que o conflito de interesse pode ou não existir, e não há como afirmar a sua presença sem um exame mais direto a uma dada situação concreta.
O ponto neste artigo é quando nós estamos diante de uma situação que nos envolve e que há a suspeita de um conflito de interesse. Costumamos negar o contrato? Dizemos não à subvenção oferecida? Tomamos uma posição ética diante de uma vantagem pessoal que é tentadora, mas que envolve conflito de interesse?
Proponho que pensemos nisso. A crítica pela crítica não nos colabora como sociedade e somente demoniza as instituições. A mudança precisa partir também de nós.
*Ana Claudia Santano é doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas. Especialista em temas políticos e constitucionais. Coordenadora-geral da Transparência Eleitoral Brasil
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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