Dispositivos de transparência e moderação de verbas públicas foram enfraquecidos nos últimos anos
É inquestionável que temos corrupção de grosso calibre no Brasil e que existe uma grande expectativa por parte da sociedade para que haja enfrentamento corajoso, prioritário e criterioso destes desvios, diz o articulista
Roberto Livianu 26.nov.2024 (terça-feira) - 5h56
Há 20 anos, em 25 de novembro de 2004, tive o privilégio de defender minha tese de doutorado sobre o controle penal da corrupção perante a banca na Faculdade de Direito da USP, sob a orientação do grande mestre Miguel Reale Júnior, advogado e ex-ministro da Justiça, maior advogado vivo do país.
Além dele, compuseram a banca o ex-presidente do TJ-SP José Renato Nalini, Antônio Scarance Fernandes, Marco Antônio Marques da Silva e o saudoso Antônio Magalhães Gomes Filho, que já dirigiu brilhantemente a faculdade.
Em 1996, na ocasião de apresentar o projeto de pesquisa, havia muitos trabalhos sobre crimes contra o consumidor, outros tantos tratando de crimes econômicos e diversos estudando crimes tributários, como o “colarinho branco”. Mas especificamente sobre corrupção nada se produzia nos anos 1990. Isso me estimulou a apresentar o projeto em 1996. Logo depois, em 1997, seria celebrada a Convenção da OCDE, subscrita pelo Brasil em 2001.
A defesa do doutorado ocorreu no ano seguinte à celebração da Convenção da ONU em Mérida, ou seja, sedimentava-se a ideia de um movimento internacional de luta contra a corrupção, e teríamos no Brasil algumas construções legais importantes nesta direção, como a Lei da Ficha Limpa (135 de 2010), a celebração do Pacto dos Governos Abertos em 2011, a Lei de Acesso à Informação (12.527 de 2011), a Lei Anticorrupção (12.846 de 2013) e a delação premiada (12.850 de 2013).
Ao longo do tempo, especialmente a partir das Convenções da OCDE em 1997 até por volta de 2013, ou seja, por quase duas décadas, experimentamos algumas evoluções, apesar de jamais termos tido a oportunidade de implantar concretamente uma política pública anticorrupção.
Entretanto, em 2014, quando a operação Lava Jato começa a atingir detentores de expressivas parcelas de poder político e econômico, inclusive mobilizando-se nacionalmente para colher assinaturas nas chamadas “Dez Medidas contra a Corrupção”, inicia-se um profundo processo de reação por parte do corpo político, semelhante àquele ocorrido na Itália das Mãos Limpas.
As “Dez Medidas contra a Corrupção”, que tiveram mais de 2,5 milhões de assinaturas, foram rechaçadas. Assim, iniciou-se um verdadeiro processo de contra-ataque político, que resultou no grave enfraquecimento do sistema legal protetivo do patrimônio público. Aviltou-se a lei de improbidade administrativa por meio da lei 14.230 de 2021, com o requinte de ser o projeto aprovado com urgência de votação admitida em 8 minutos e sem sequer a realização de uma mísera audiência pública na Câmara.
A Lei de Abuso de Autoridade foi reformulada para serem introduzidos tipos penais nitidamente dirigidos a magistrados, integrantes do Ministério Público e delegados de polícia, visando ao enfraquecimento do combate à corrupção pelo método da intimidação. Não há qualquer previsão de punição a abuso de autoridade de políticos.
Durante a pandemia, diversas ações foram adotadas com o nítido propósito de garantir a impunidade por lei, como a histórica medida provisória 966 de 2020, editada com nítido propósito de não punir atos de corrupção de agentes públicos cometidos durante aquele período, assim como a mobilização da base congressista pela aprovação da Lei 14.230 de 2021 e o desmonte da Lava Jato.
Ainda que se possa fazer críticas por condutas individuais em relação à Lava Jato, é inquestionável que temos corrupção de grosso calibre no Brasil e que existe uma grande expectativa por parte da sociedade para que haja enfrentamento corajoso, prioritário e criterioso destes desvios, que não podem ser encarados da mesma maneira que a criminalidade de varejo, sob pena de termos resultados ineficientes e frustrantes.
Passadas as eleições de 2024, estamos às voltas com as questões gravíssimas inerentes às emendas parlamentares, no campo do orçamento público, assim como na iminência de termos a votação do desmonte da Lei da Ficha Limpa.
Num dos maiores furos jornalísticos da história recente, foi revelado o chamado “orçamento secreto”, mostrando-se que dezenas de bilhões do orçamento público são manipulados pelo Congresso, numa total e absoluta deturpação do desenho constitucional que atribui tais papéis para o Executivo.
Em recente pesquisa divulgada pelo Insper, escancarou-se a discrepância brasileira neste quesito em relação aos países da OCDE, em que inexiste tal manipulação. O STF, observando a Constituição, acolheu pedidos de Abraji, Psol e PGR (Procuradoria Geral da República) e determinou a rastreabilidade e o apontamento prévio da destinação das verbas em emendas e vedação de cruzamento de recursos para unidade para qual não pertença o congressista, o que desagradou o Congresso.
O desagrado se explica: 93% dos maiores beneficiários de emendas PIX foram reeleitos, evidenciando-se o peso deste fator nas eleições, sendo que tivemos um aumento de 14 vezes na apreensão de recursos relacionados à corrupção eleitoral nestas últimas eleições municipais, o que mostra a importância de amplificarmos o trabalho de esclarecimento em relação à danosidade da venda do voto para a sociedade.
O Senado a qualquer momento pode votar o PLP 192 de 2023 para enfraquecer a Lei da Ficha Limpa, uma das pouquíssimas leis em vigor oriundas da iniciativa popular, que avançou sem qualquer debate democrático.
Tanto na Câmara como no Senado tem crescido a quantidade de urgências de votação, que são feitas sem audiência pública. Em 2008, foram 22 urgências no ano todo e, se prosseguirmos neste ritmo, teremos 400 em 2024, empobrecendo a democracia. Nestes 20 anos, infelizmente, o balanço não é positivo em relação ao controle da corrupção, sendo absolutamente imprescindível que revertamos de imediato esta tendência nefasta, que prejudica o interesse público e a sociedade.
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