Corrupção significa, no âmbito da definição do dicionário, deterioração, decomposição física de algo, putrefação. Habituados estamos, nós brasileiros, aos casos de corrupção no universo da política, na pornográfica e pouco republicana colonização dos interesses públicos por interesses privados, de indivíduos e grupos que se assenhoram de recursos que deveriam ser destinados à sociedade, ao serviço público, à melhoria da vida dos brasileiros. Quero, contudo, aqui, neste breve escrito, tratar de outro tipo de corrupção: a da realidade. Vejamos.
Há cerca de um ano e meio estamos num cenário pandêmico. Nossos problemas históricos e estruturais – desigualdades de renda, de educação, de oportunidades e regionais – se agudizaram na conjuntura em tela por conta da pandemia da Covid-19. O governo que ora ocupa do poder imprimiu, na política e na sociedade brasileira, um presidencialismo de confrontação, tratando de separar o que entendia como a “nova” da “velha” política. Retomou, de certa forma, o já famigerado “nós x eles” do lulopetismo, só que de forma mais agressiva e aprofundando o ataque à democracia e às instituições republicanas. A política, neste caso, deixou de ser espaço de diálogo, de debates, de convencimento e de projetos públicos para se tornar uma arena de eliminação (por enquanto simbólica) dos “inimigos”. No espaço político, há os adversários, com os quais temos que conviver e não inimigos que, pela lógica bélica, devem ser eliminados. Projetos para o país e ações de governo foram suplantadas pela guerra ideológica, cuja expressão mais bem acabada está no bojo das redes sociais. Seria, para o bem da racionalidade, suspender esta visão deturpada de política, especialmente, na presença de uma pandemia que, logo mais, terá levado à morte cerca de 500 mil brasileiros. Contudo, não foi isso que se viu. O Governo Bolsonaro dobrou a aposta e aprofundou a confrontação.
As fakes news, pós-verdades, teorias da conspiração e negacionismos de toda a sorte pulularam das falas do Presidente Bolsonaro, de ministros, deputados, enfim, daqueles que, detentores de cargos públicos via eleições, deveriam zelar pelo enfrentamento da pandemia, à luz da ciência e dos protocolos sanitários e médicos reconhecidos mundialmente. Buscou-se menosprezar a pandemia, tratando-a como uma “gripezinha”, fez-se de tudo para impedir o distanciamento social e, ainda, o uso de máscaras objetivando evitar as contaminações e mortes. Não menos importante, foi o deliberado atraso na negociação e compra de vacinas, bem como os ataques aos imunizantes por parte daqueles que, constitucionalmente, deveriam fazer de tudo para disponibilizá-los aos cidadãos. A lógica reinante – assentada em fake news, pós-verdades, teorias da conspiração e negacionismos – são elementos de corrupção da realidade, pois deterioram as relações sociais, a política, a democracia, os valores republicanos e o próprio tecido social. Em verdade, o tecido social-democrático é tensionado cotidianamente e isso leva ao seu esgarçamento e até uma possível ruptura.
Nas palavras de Diogo Rais, em “Fake News: A conexão entre a desinformação e o direito”, há o seguinte: “Partindo da premissa de que a mentira está no campo da ética, sendo que o mais perto que a mentira chega no campo jurídico é na fraude e, talvez, uma tradução jurídica para as fake news seria “notícias ou mensagens fraudulentas”. Enfim, talvez um conceito aproximado do direito, porém distante da polissemia empregada em seu uso comum, poderia ser identificada como uma mensagem propositalmente mentirosa capaz de gerar dano efetivo ou potencial em busca de alguma vantagem”.
Já Matthew D’Ancona – em “Pós-Verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news” – assevera, acerca da pós-verdade, que: “Não por acaso, em 2016, o Oxford Dictionaires escolheu “pós-verdades” como sua palavra do ano, definindo-a como forma abreviada para “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”.
E, ainda, Giuliano Da Empoli aduz, em sua obra “Os engenheiros do caos” que: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática […]. No entanto, por trás das aparências extremadas do Carnaval populista, esconde-se o trabalho feroz de dezenas de spin doctors, ideólogos e, cada vez mais, cientistas especializados em Big Data, sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder”.
É óbvio que a conhecida corrupção com desvios de dinheiro público, superfaturamentos e a malversação de recursos públicos continua, infelizmente, a vicejar em nosso país. A Comissão Parlamentar de Inquérito, no Senado Federal, debruça-se, além das responsabilidades do Governo Federal em relação à pandemia, sobre ações nos estados e municípios, com foco em governadores e prefeitos que, por ventura, tenham cometido atos de corrupção. Todavia, o ataque aos valores atinentes à razão e à ciência são nefastos e corrompem os alicerces não apenas da saúde pública, mas, também, da própria dinâmica democrática no bojo de nossa sociedade.
A corrupção da realidade, a distorção de fatos, do conhecimento científico, da razão iluminista, reclama de todos, cidadãos conscientes, tomada de posição crítica e defesa dos valores democráticos e republicanos. Os tempos são sombrios, mas a esperança não pode esmorecer na busca de dias melhores.
*Rodrigo Augusto Prando, conselheiro do Instituto Não Aceito Corrupção, professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Sociologia, pela Unesp.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção.
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