Eis que Preguinho, ao ver a imagem de Vini Jr. exibida na TV do bar, traz para a mesa o tema do racismo
Por Roberto Livianu
07/07/2023 00h02
Naquela mesa, os velhos amigos se encontravam havia décadas, em Copacabana, no ritual sagrado das quintas sem lei. Na última semana do mês, a confraria se reunia para celebrar as conquistas, a formatura dos filhos, os casamentos, chorar as tristezas dos amores não correspondidos, as perdas dos entes queridos, as rasteiras e as trairagens sofridas pelas tortuosas alamedas da vida.
Preguinho, Rota 66, Sem Futuro, Carcamano, Alemão e Camarada eram da mesma geração do final da década de 60. Únicos casados: Preguinho e Carcamano. Mas ali era o território livre da parceria dos homens. Conheciam-se por terem nascido e se criado no bairro, e alguns estudaram juntos. Pelo olhar, sabiam um do outro e se o momento era bom ou mau — uma ligação mais forte até que a de muitas famílias, que muitas vezes não nutrem nem trocam afetos.
Eles trocavam afetos como se irmãos fossem, tinham prazer real em partilhar ideias, dialogar, pensar juntos a vida, o mundo, a política, apesar de terem posições diferentes, o que todos naturalmente respeitavam. Eis que Preguinho, ao ver a imagem de Vini Jr. exibida na TV do bar, traz para a mesa o tema do racismo — o jogador vem sendo vítima implacável na Espanha. E Preguinho fala do assunto cheio de gana por ser negro retinto, por ter sofrido episódios de preconceito racista em sua jornada de vida, mesmo tendo instrução superior.
A turma se agita por causa do episódio em que, num jogo, metade do estádio xingou o jogador brasileiro de macaco, e Xeréu, o dono do bar, com os oclinhos na ponta do nariz, permanece ligado na conversa, ficando claro pelas falas que era como se a dor de Preguinho fosse a dor dos demais. Geralmente era assim: se um assunto era considerado importante, passava a ser assim para todos.
Xeréu adquiriu o título de agregado da confraria pela qualidade dos pastéis de queijo que preparava, pelo bolinho de bacalhau, pelo churrasquinho, pela cerveja sempre trincando de gelada e pelo acolhimento, como se fossem de sua família. Era um legítimo confrade, e o bar verdadeira extensão das casas da trupe, onde se viviam as emoções do futebol, o bilhar e a Praia de Copacabana, a poucos metros dali, com seu colorido e energia únicos no planeta.
O dono do bar lembra que, por falar em discriminação, a Câmara dos Deputados acabava de aprovar um Projeto de Lei para proteger os coitadinhos dos parlamentares, vítimas de preconceito, especialmente quando postulassem financiamentos ao sistema financeiro.
Carcamano perde a compostura: “Para já, aí é sacanagem, aí eles estão querendo legislar em causa própria”. Xeréu, advogado, explica que a pena é maior até que aquela para atos de preconceito por idade ou contra pessoas com deficiência. Preguinho completa: será que, por coerência, desistirão daquela proposta de anistiar os partidos, que aumenta o preconceito contra negros e mulheres? Sem hesitar, a confraria ergue os copos, brada e brinda contra a nova e horrenda versão da Lei da Mordaça. Um por todos, todos por um!
*Roberto Livianu, procurador de Justiça em São Paulo, é doutor em Direito pela USP, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e cronista
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